"(...) Vamos lá: a miscigenação existe porque o colonizador do Brasil, Portugal, misturou os seus homens brancos com as mulheres indígenas, e depois com as mulheres africanas que para lá levou à força, como escravizadas. Misturou é ao mesmo tempo um facto e um eufemismo. Facto, porque o resultado é uma mistura mesmo. Eufemismo, porque está no lugar da palavra violação: homens com poder abusando de mulheres capturadas, fossem “pegas no laço”, como se dizia das índias, fossem escravizadas, ou subjugadas de qualquer outra forma, mulheres que não estavam livres para rejeitar essa relação, muitas vezes traduzida em filhos. O colonizador não fazia estes filhos porque tinha uma abertura, uma tolerância, uma propensão para a mistura — como o luso-tropicalismo quis vender, até hoje com sucesso —, e sim porque 1) Portugal, ao contrário de outras potências coloniais, levou pouquíssimas mulheres brancas para o Novo Mundo e 2) povoar o Novo Mundo era uma das condições essenciais à colonização.Atalhando, a miscigenação nasceu da violência em massa sobre mulheres indígenas e negras. E essa violência continua a a não ser largamente reconhecida em 2018, fora da academia e de núcleos activistas. Mas qualquer debate sobre miscigenação terá de partir daí, da origem. E qualquer debate sobre miscigenação que não parta da origem vai gerar equívocos, involuntários e deliberados. Aliás, gerar equívocos tem sido um método do não-debate.
A primeira violência colonial é a violência sobre o corpo das mulheres, no século XVI como em 2018. Desvalorizar a violência do que se passou com as mulheres no século XVI continua a ser uma violência para as mulheres de 2018 (e para quem quer que se interesse pela verdade). Uma forma de dizer: para quê usar a palavra violação, era assim que as coisas eram, esqueçam. Sim, era assim que as coisas eram, foi assim que as coisas foram durante séculos, é assim que as coisas continuam a ser em demasiados lugares do mundo, e é por isso é que têm de ser encaradas. Uma longa história da violência, paralela à história masculina das violências.
Da violência base da miscigenação no Brasil resultaram muitos milhões de pessoas. Tantos que a cara do Brasil continua a ser morena, apesar de todo o esforço oficial de branqueamento levado a cabo por governos brasileiros, com incentivos à emigração europeia, desde a véspera da Abolição da Escravatura, em 1888. O Brasil é índio, preto, branco, mulato, caboclo, cafuzo. É o resultado de toda essa história. E a Segunda Abolição, que Caetano sempre defendeu que era necessária — volta a dizê-lo neste filme —, tem de ter todo o mundo lá, livre, ou não o será. Não será abolição. E como ela é necessária. (...)"
Alexandra Lucas Coelho
se te estenderes na areia
faz montes que
encaixam nos nós do
teu corpo, como moldes.
se entrares na areia
deixa o vento
pentear a curvas
nas costas, fazer carícias.
se te deitares nas rochas
encontra o ângulo,
a linha côncava do
mineral.
se entrares nas rochas
deixa que o limo e as algas
te cubram
como escamas novas.
se fitares o mar
atira-lhe as conchas que devolve
à rebeldia da areia
e do vento.
se desejares as ondas
não as olhes. ouve-as só,
a balançar como
um corpo estranho.
se souberes do mar,
da massa de água,
não a abraces. senta-te ao lado.
penteias a areia
acaricias a pele, no ar,
voltas ao peixe. depois,
um ser unicelular, sem memória
nem gesto.
Esta imagem, resumi-a à escuridão, para poder destacar "a República ao fundo", mas o que faz sentido é falar do porquê de me perder por aqui. Um sítio onde vivi alguns meses, que me marcaram, talvez ainda mais que os dois anos inteiros que vivi em Lisboa. Os sítios podem ser tão importantes como as pessoas, os momentos, o lugar onde estamos na vida. Às vezes sobrepõem-se à ideia de felicidade, ou de tristeza, são recetores de todas as emoções, como se tivessem emoções eles próprios.
É um sentimento que me lembra a infância, e a adolescência, quando a solidão me pareceu cada vez mais óbvia, mais premente. Invejar os amigos dos outros, os que tinham grupos, parelhas, conjuntos nos quais encaixar. Mas, no fundo, é um sentimento que vem da infância sozinha: filha única, primos mais velhos, sempre a inventar amigos invisíveis para fazer a imaginação brotar.
Não estar sozinha não se ensina, nem se aprende, arranja-se. Encontram-se, ou não, as pessoas que querem estar connosco muitas vezes, e outras, todos os dias, para “dividir” a vida. Mas estar sozinha não é uma escolha, tal como nem sempre estar acompanhado é (apenas) uma escolha. Na maioria das vezes é um constrangimento.
Ninguém quer estar sozinha.
A personagem do Harvey Keitel no filme Smoke (1995) de Wayne Wang, empregado de uma tabacaria numa esquina de Queens, NI, que fotografava todos os dias (religiosamente) essa mesma esquina, antes de abrir a loja.
© Espólio Fotográfico Português. Armazéns do Anjo (Sucursal), 1939. Passado |
Não é uma novidade: contrapor imagens do início do século passado e imagens do início deste século, num "antes" e "depois" ao comparar os mesmíssimo lugares. No (centro do) Porto, esse é um exercício que dá arrepios, pela forma como a cidade manteve a sua estrutura urbana quase intacta nos últimos 200 anos. Mas isso já não é verdade no que diz respeito aos negócios da cidade. As lojas que se perderam e ganharam, estão incrivelmente documentadas nestes volumes, editados precisamente na altura em que terminava o meu projeto.
Mas não era de revivalismos, ou saudosismos que eu queria ter falado naquele trabalho: apenas de sensibilidade. E as coisas sensíveis nem sempre têm argumentos científicos. Foi dessa dificuldade, de passar de um argumento que era sensível, a um argumento que pudesse ser arguível (numa defesa de dissertação) que me desviei do objetivo que tinha para esse estudo. Felizmente atualizei-o, acabando por estudar as novas fórmulas de um novo comércio que estava a emergir na cidade. De lado ficaram uma dezenas de fotografias que documentavam esse antes e depois, de dezenas de lojas da cidade do Porto. Para mim era a documentação de uma perda; de como os símbolos de uma era haviam sido banidos, eliminados e esquecidos. A arqueologia gráfica por si só não me interessa: criar um museu daquilo que a cidade escolheu esquecer parece-me muito como um exercício de estilo. Mas criar fórmulas arquitetónicas e de design que possam integrar ou reintegrar estes símbolos na paisagem da cidade parece-me sempre um exercício muito mais rico — e tão mais difícil de imaginar.
Armazéns do Anjo, 2011. Presente |
Hoje este exercício parece-me tão mais pertinente do que quando o fiz. Elaborei-o nesse ano para uma submissão ao II Encontro Nacional de Tipografia. Segundo o texto que produzi então: "Pretendeu-se materializar, por imagens, uma viajem no tempo na cidade do Porto, pelo seu comércio tradicional. Descobrir o que aconteceu a este tipo de comércio, o que aconteceu à cidade e de que forma é resgatável o potencial da memória de uma época (primeira metade do séc. XX) que marcou definitivamente o seu desenho."
Estas imagens parecem-me hoje mais interessantes, como experiência visual, pelo exercício temporal, e pela ideia como o apresentei: com a adição de uma terceira imagem que representa o futuro, na sobreposição das imagens do passado e do presente:
"No processo de análise e tratamento das imagens, pareceu-me mais interessante que a visualização lado a lado, do “antes e depois” — ou do “ontem” e “hoje” (…), a visualização da sobreposição das duas, como se tratasse de uma dupla exposição fotográfica do passado e do presente — imagem à qual, quase instintivamente, intitulei de “futuro”. Se realmente o futuro é moldado no “hoje” quotidiano, ele deverá, à luz dos novos paradigmas da nossa era, ser pensado também com base na herança da tradição. A cidade contemporânea não deverá conter apenas a imagem de um passado renovado, mas de um presente com memória, que saiba reinterpretar-se à luz das tradições, adicionando significados à sua identidade presente."*
Armazéns do Anjo (Sucursal). Futuro |
Se bem que a utilização do termo "tradição" é um pouco dúbia em relação ao que hoje considero que seja importante nesse conceito, de forma geral este texto ainda corresponde ao objetivo inicial desta pesquisa: a busca de um argumento (visual, gráfico, mas também histórico, patrimonial e simbólico) para essa regeneração do comércio tradicional do Porto, e da própria identidade do território.