Da miscigenação

By sufragista - julho 28, 2018


"(...) Vamos lá: a miscigenação existe porque o colonizador do Brasil, Portugal, misturou os seus homens brancos com as mulheres indígenas, e depois com as mulheres africanas que para lá levou à força, como escravizadas. Misturou é ao mesmo tempo um facto e um eufemismo. Facto, porque o resultado é uma mistura mesmo. Eufemismo, porque está no lugar da palavra violação: homens com poder abusando de mulheres capturadas, fossem “pegas no laço”, como se dizia das índias, fossem escravizadas, ou subjugadas de qualquer outra forma, mulheres que não estavam livres para rejeitar essa relação, muitas vezes traduzida em filhos. O colonizador não fazia estes filhos porque tinha uma abertura, uma tolerância, uma propensão para a mistura — como o luso-tropicalismo quis vender, até hoje com sucesso —, e sim porque 1) Portugal, ao contrário de outras potências coloniais, levou pouquíssimas mulheres brancas para o Novo Mundo e 2) povoar o Novo Mundo era uma das condições essenciais à colonização.
Atalhando, a miscigenação nasceu da violência em massa sobre mulheres indígenas e negras. E essa violência continua a a não ser largamente reconhecida em 2018, fora da academia e de núcleos activistas. Mas qualquer debate sobre miscigenação terá de partir daí, da origem. E qualquer debate sobre miscigenação que não parta da origem vai gerar equívocos, involuntários e deliberados. Aliás, gerar equívocos tem sido um método do não-debate. 
A primeira violência colonial é a violência sobre o corpo das mulheres, no século XVI como em 2018. Desvalorizar a violência do que se passou com as mulheres no século XVI continua a ser uma violência para as mulheres de 2018 (e para quem quer que se interesse pela verdade). Uma forma de dizer: para quê usar a palavra violação, era assim que as coisas eram, esqueçam. Sim, era assim que as coisas eram, foi assim que as coisas foram durante séculos, é assim que as coisas continuam a ser em demasiados lugares do mundo, e é por isso é que têm de ser encaradas. Uma longa história da violência, paralela à história masculina das violências. 
Da violência base da miscigenação no Brasil resultaram muitos milhões de pessoas. Tantos que a cara do Brasil continua a ser morena, apesar de todo o esforço oficial de branqueamento levado a cabo por governos brasileiros, com incentivos à emigração europeia, desde a véspera da Abolição da Escravatura, em 1888. O Brasil é índio, preto, branco, mulato, caboclo, cafuzo. É o resultado de toda essa história. E a Segunda Abolição, que Caetano sempre defendeu que era necessária — volta a dizê-lo neste filme —, tem de ter todo o mundo lá, livre, ou não o será. Não será abolição. E como ela é necessária. (...)"

Alexandra Lucas Coelho 

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