Rebecca

By sufragista - novembro 07, 2018


A primeira metade deste livro são relatos textuais de notícias dos últimos 20 anos. São um chorrilho de factos. Violência contra as mulheres: maus-tratos, perseguições, homicídios, violações, tortura, abusos, intimidações, chantagem emocional, manipulação. É um não parar de notícias de jornal de casos de violência de homens contra mulheres, com estatísticas e estudos que comprovam as notícias. Em todo o mundo, apesar do foco nos EUA. Chegamos ao fim do capítulo sem fôlego. 

Eu cheguei a meio quase sem respirar porque teve o dom de me recordar imagens que eu havia esquecido, coisas do meu subconsciente que a memória tinha reservado num canto. Coisas que não era para me lembrar, porque a vergonha de me ver de fora era tanta, que permitir que aquela humilhação fosse real era impossível, que jamais se teria passado. E, no entanto, este texto catártico de exposição da violência contra as mulheres — descrita exatamente como uma epidemia — tinha-me levado a reconhecer em mim própria esses esqueletos no armário, esse “me too”. Eu também. Eu também me senti humilhada, desprezada, desvalorizada, infantilizada, desempoderada, insultada e magoada diariamente — e tinha sido um homem a fazê-lo. Não tinha sido a minha culpa. Era personalizável. E isso é uma libertação.
Durante anos desconfiei dos mecanismos de glorificação da vítima: dos livros de auto-ajuda escritos na primeira pessoa, das “celebridades” que se davam como exemplo de superação de inúmeros problemas pessoais, porque o que se ganhava com isso era um público para um produto, havia sempre uma troca comercial implícita nessa exposição. Quando se passava nas redes sociais era ainda mais óbvio e nunca lhe reconheci valor ou propósito.

A verdade é que este livro, vários artigos feministas depois e a aparição do movimento #metoo me levou a mudar a minha ideia-feita sobre o poder massivo do exemplo, da auto-exposição em torno de uma causa pública que também é privada. E a compreensão progressiva do que é isso do “lugar de fala”, de como reclamar individualmente uma voz para a juntar a tantas outras, como as matizes de cada uma, nos torna finalmente visíveis publicamente. A verdade já não é apenas detida por uma autoridade normativa — masculina, branca, heterossexual — mas pela força de uma ação individual, consertada em movimentos como o #metoo ou o #blacklivesmatter, para nomear apenas os mais mediáticos.

Apesar da sensação de condenação do outro, há uma libertação de culpa que é esmagadora na consciência das mulheres em todas as suas relações. Os homens sabem manipular este sentimento de culpa das mulheres, mesmo que seja inconsciente. Todos estes vícios tóxicos estão implícitos nas nossas condutas sociais mesmo de uma forma inconsciente: estamos intoxicadas/os de preconceitos, de maniqueismos e de lugares-comuns aos quais respondemos como vimos outros responder. Homens e mulheres, historicamente educados de forma estruturalmente diferente, divergente, hierarquizada e desigual. Se o princípio é a educação então está tudo por fazer, sempre.

Este texto não quer apresentar nada novo, no fundo acho que este trabalho, de dar voz às mulheres (como das outras minorias sociais) deve ser o da repetição, da coleção, da acumulação de exemplos — diferentes entre si mas sempre coincidentes no que revelam das estruturas fundamentalmente desiguais das sociedade humanas (nomeadamente das sociedades ocidentais e ocidentalizadas). E na importância de reconhecer padrões de comportamento: uma epidemia é tão massiva que se pode tomar como a norma, mas se o resultado são milhares de mulheres mortas anualmente, então alguma coisa está profundamente errada, estamos todas/os em negação.

Se o mais difícil é ser-mos sinceras connosco mesmas, então começar por aí pode desencadear uma revolução em cadeia. É também isso que a autora revela neste livro e é a propósito desta honestidade impactante que escrevo sobre isto.

O mais importante é poder tornar visível aquilo que mentimos em sociedade: que as mulheres já são iguais e já têm direitos iguais aos dos homens, que a colonização portuguesa foi branda e os portugueses não são racistas, que os gays e as lésbicas já podem casar e por isso já existe uma igualdade de oportunidades, que as pessoas muito pobres não querem realmente ser inseridas na sociedade, etc. Admitir qualquer uma destas coisas é como uma derrota que autorizamos. Como um problema que relativizamos porque não é nosso.

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