"A Nova Direita, e com isso quero dizer sobretudo a moderada e liberal, modernizou-se, o que significa que encontrou modos mais delicados de fazer o que sempre fez – defender a tradição, a inevitabilidade de haver pobres, das mulheres ganharem menos, dos ricos serem o motor da sociedade, do casamento heterossexual ser a base da sociedade, etc.
Dantes fazia-se isso tudo através da religião e do Sangue (não o derramamento mas a transmissão). Agora, em democracia são precisos outros argumentos. A economia foi o principal nestes últimos trinta anos. O mercado livre encarregava-se de organizar a sociedade do modo mais «natural»: os pobres em baixo, as mulheres ao lado mas um pouco mais abaixo, etc. As minorias raciais porque tendiam a ser pobres, podiam-se manter no seu lugar discriminando simplesmente os pobres.
E assim conseguia-se um mundo onde não havia discriminação feita pela mão humana. Era o mercado a funcionar. O problema é que não havendo uma fronteira imposta pela força, havia mulheres que subiam nas hierarquias, às vezes apareciam negros ou ciganos. De repente, até era o próprio colega ou patrão que assumia a sua homossexualidade.
De repente, toda aquela conversa que se tinha para quebrar o gelo, para pôr a rapaziada à vontade, para mostrar que se fazia parte do grupo, se tinha tornado um pouco embaraçosa. O que se tinha feito desde sempre passava a ser um insulto para alguém. Já não se podia dizer que "se trabalhava como um preto" ou que às vezes "era preciso ser um pouco cigano", que "não se pode ser maricas" ou que "é preciso ter tomates" sem correr o risco que alguém apontasse que tudo isso implicava equiparar grupos inteiros de pessoas a escravos, ladrões, cobardes ou mulheres.
A solução que se foi arranjando para continuar a fazer isso foi invocar a liberdade de expressão. Pode-se dizer o que se quiser desde que não afecte a liberdade de outras pessoas. O problema é que isso não chegava. Porque a liberdade de expressão de alguém não pode impedir outra pessoa de discordar, de criticar. Assim, começou-se a dizer que chamar a alguém racista, sexista, homofobo, etc. não era liberdade de expressão mas censura.
Resolvia-se de o problema de quem insistia em criticar o preconceito estrutural da sociedade "livre" de mercado classificando-os como uma ditadura que censurava a linguagem e os costumes. A ideia da existência uma polícia da linguagem e dos costumes era importante porque permitia desviar as atenções dos atropelos quotidianos (violência sobre minorias, deportações, violações, etc.) para questões conotadas com superficialidade. Denunciavam-se o zelo com que um livro era tirado do currículo de uma escola ou a maneira como se criticava o uso da palavra «maricas» ou «preto». Centrar a discussão na linguagem, retirava-lhe legitimidade.
O problema é que não funcionava. Por detrás desta discussão toda com a linguagem, a desigualdade persistia, pessoas eram mortas, etc.
E, pior, normalizar a ideia que denunciar preconceitos equivale a censura dava uma desculpa e uma legitimidade democrática aos piores modos de discriminação, que podiam invocar o seu direito à liberdade de expressão, que começou a incluir o direito a não ser criticado – porque crítica é censura.
Não é o chamado "politicamente correcto" que provoca a aparição da extrema-direita, mas a ideia que se foi criando que combater o racismo, a misoginia, a homofobia e outras formas de preconceito, equivale a censura e a uma ditadura."
texto do Mário Moura publicado em 24.08.2017 no Facebook
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