A historiadora Joacine Katar Moreira havia sido convidada pela organização do ciclo de cinema, para a apresentação do filme exibido nesta sessão — uma colaboração entre o pelouro da Cultura da CMP e o Cineclube do Porto — e foi devidamente apresentada pelos seus responsáveis, Joana Canas Marques (do Cineclube do Porto) e Guilherme Blanc (da CMP). O filme em causa é um documentário intitulado “Sobre a Violência” (“Concerning Violence” de Góran Olsson, Suécia 2014) e, de acordo com a sinopse publicada pela organização: “Através das palavras de Frantz Fanon em “Os condenados da Terra” e recorrendo a várias imagens de arquivo, “Sobre a Violência” explora a questão da posição europeia em relação ao colonialismo e os mecanismos da descolonização. “Sobre a Violência”, de produção sueca é narrado pela cantora Lauryn Hill.”
Até aqui, poucos minutos antes da sessão começar, a sala permanecia às escuras, como se o filme começasse dentro de minutos. O público queixava-se audivelmente da falta de luz sobre a zona do palco, especialmente quando JKM tomou o palco para uma introdução ao filme e ao temas debatidos no mesmo. Apesar da iluminação do palco nunca acontecer, o público seguia atento o discurso da convidada que colocava questões muito sensíveis, tal como o filme em questão. Numa parte em que menciona a questão da escravatura, do ponto de vista da história, de não se escrever escravatura com ‘E’ maiúsculo tal como se fez com a palavra Holocausto, e questiona de seguida — desde já, tal como no próprio filme — a relação unívoca entre masculinidade e capitalismo, e consequente, o colonialismo, um homem no público interrompe bruscamente a historiadora durante a sua exposição para dizer, primeiro, que discordava e logo em seguida que se “assumia” como um homem branco, o que não ficou sem reparo por outras pessoas no público, pela redundância (e absurdo aparente) daquela afirmação. JKM conseguiu apenas reiterar que naquele momento a palavra era dela, mas a confusão e o desconforto havia-se instalado e logo outro homem no público, que se encontrava no estremo superior da sala, começou a vociferar em voz alta contra o facto de estar apenas a ver uma silhueta, de não querer ouvir aqueles comentários que deveriam ser feitos no final da sessão, que estava muito calor na sala e não conseguia respirar e já tinha pedido para ligarem o ar condicionado e que “tinha direitos”. A maioria do público dizia-lhe para se calar, que se não estava bem que saísse e que queriam continuar a ouvir a introdução ao filme, pela convidada. Foi isso que ouvi explicitamente por parte de uma rapariga brasileira sentada atrás de mim, que estava realmente interessada no que ela estava a dizer e queria ouvir mais. O que aconteceu de seguida surpreendeu-me: os organizadores dirigiram-se ao homem que se queixava do calor na tentativa de acalmar os seus ânimos ou de perceber as suas queixas. A convidada saiu do palco visivelmente incomodada não antes de dizer que são sempre os homens a fazer este tipo de coisas. E a sessão do filme foi iniciada mal o homem queixoso se calou, talvez uns 10 minutos depois. Não houve espaço para nenhum reparo nem nenhuma informação adicional por parte da organização ou por responsáveis da Biblioteca.
O filme, além de várias imagens impróprias para menores, deixará qualquer branco e certamente qualquer português branco com um sentimento de culpa histórica, um desconforto e uma dúvida permanente sobre o que fazer desses sentimentos. JKM não disse praticamente nada que não estivesse explícito ou implícito neste filme, baseado na obra homónima de Frantz Fanon, à excepção de juntar a sua visão feminista sobre os eventos da descolonização portuguesa em África, que são também abordados no filme.
Talvez fosse o desconforto de ser uma mulher negra a falar sobre o homem branco, sobre as sociedades dos homens brancos. Talvez fosse uma personalização desse discurso desconfortável, que levou alguém a assumir-se como algo que é visível e demograficamente comum em Portugal: um homem branco. Talvez fosse pela sensação de estar a ser visado nos seus privilégios, que como ouvimos, levam os homens a achar-se no direito de interromper alguém com que não concordam, e no direito de afirmar que “tem direitos” — que, vejamos, é apenas um eufemismo para “tenho privilégios”. A arrogância de afirmar que “tem direitos” após interromper o discurso de alguém com quem não concorda é claramente igual a dizer que tem direito a calar o outro. Ora, num espaço público, com uma programação cultural pública e municipal, não pode haver espaço para este tipo de intimidação.
Poucos eventos ilustram tão bem aquilo de que JKM falava. E que tantas mulheres, e homens, que subscrevem uma visão feminista do mundo, afirmam olhando precisamente para a história. Precisamente a propósito disto, acho que é particularmente importante partilhar este episódio agora, após a eleição democrática de JKM como deputada na Assembleia da República, órgão maior de representação política no nosso país, onde tantos não imaginavam poder chegar uma mulher negra que não pertence às elites. Uma Marielle portuguesa e guineense. Uma pessoa que, para além de um contributo como investigadora social e historiadora, tem um contributo pessoal: colocar a sua vida e as suas características pessoais como conteúdos políticos. Porque não podemos negá-los enquanto tal.
Quantos de nós estaríamos dispostos, para além da exposição mediática, de apresentarmos a nossa biografia como algo político? No entanto, quantos homens (brancos) o fizeram, na política ou na cultura, no nosso país, e foram aplaudidos por isso? Ninguém é imune às biografias daqueles que nasceram em meios empobrecidos e conseguiram formar-se e ser os melhores nas suas áreas, desde Saramago a Cristiano Ronaldo.
O que me leva ao essencial: não é, obviamente, a sua gaguez que faz com que a queiram calar, tal como este episódio demonstra. Tendo tudo isto em conta, também não é o facto de ser alguém com raízes humildes. Portanto há-de se prender com a sua origem ou com o seu género. O homem que a interrompeu disse claramente sem qualquer contexto prévio: “Eu assumo-me como um homem branco”. Ora, se não estivéssemos às escuras naquela sala, talvez ele não tivesse de se “assumir” uma vez que essas características seriam perfeitamente visíveis. Ou será que ele teve de se “assumir” porque estava a ser confrontado com a visão de alguém que é simbolicamente o seu oposto: uma mulher negra? Será que a identidade dela ameaça a sua, e ele teve de dizer aquilo não para ser visível mas para reafirmar o seu privilégio sobre alguém que ele considera que não tem os mesmos direitos que ele? Ou será ainda que devíamos ter “confiado” na penumbra daquela sala não como uma forma de esconder uma identidade mas como uma metáfora da negritude e da penumbra em que vemos o negro, na senda do filme que estávamos prestes a visionar?
Ainda mais a propósito, nesse mesmo dia, eu havia comprado na mesma Feira do Livro do Porto, às portas da Biblioteca Pública onde decorreu esta sessão, esta edição preciosa da Orfeu Negro: “Memórias da Plantação” de Grada Kilomba. Um ensaio publicado uma década depois em português, que será um dos primeiros ensaios no nosso país a debruçar-se sobre todos estes incómodos, do passado colonial ao racismo quotidiano que esse passado faz questão de fazer sempre presente: “O passado colonial é memorizado na medida em que não é esquecido. Às vezes, é preferível não lembrar. Mas a teoria da memória é, na verdade, uma teoria do esquecimento. Não podemos simplesmente esquecer e não podemos evitar lembrar.”
0 comments