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The twenty-first century

By sufragista - fevereiro 29, 2020



Pois agora vem para aqui o ‘preto’...” “O ‘preto’ está para ali a fumar e a beber a super bock do supermercado...
O homem volta a entrar na cafeteria enquanto resmunga estas frases em direção à cozinha e ao empregado que olha para a esplanada enquanto abana a cabeça em desaprovação. O homem gere a cafeteria com a mulher mas o espaço não é privado, trata-se da cafeteria do edifício de uma biblioteca  e da galeria municipal da cidade. É um espaço público, no qual, certamente, aplicam-se regras diferentes de espaços de restauração privados. Não faço ideia se é permitido consumir outros produtos na esplanada deste espaço e tampouco é relevante neste caso. O que é relevante são as palavras usadas para classificar uma pessoa. Só por si este episódio seria muito grave.

Não passavam dez minutos deste episódio quotidiano, quando oiço, ao balcão, uma cliente a discutir com este mesmo funcionário. O pedido dela teria sido negado, ou ter-lhe-ão dito que não havia aquilo que queria, não consegui perceber exatamente, e ouço-a dizer que ele tinha sido malcriado no seu atendimento. Ela é uma mulher racializada. Antes de se ir embora e visivelmente incomodados, tanto ele como a funcionária atrás do balcão, trocam olhares cúmplices e envergonhados. Depois da cliente se ir embora, a funcionária comenta com ele, de forma propositadamente audível, algo como “e depois as pessoas pensam que nós não somos simpáticos com os clientes, eles é que são os verdadeiros racistas...”

Mais explícito que a tensão que senti neste episódio é impossível. Nesta situação quase surreal, foi quase como ver dois séculos de distância entre pessoas no mesmo plano, temporal e físico, de existência. O que há entre o “nós” e o “eles” é precisamente esse intervalo civilizacional, temporal, cultural, geracional, que nos impede de ler a maioria destas situações de uma forma clara. Sem dúvidas. Sem equívocos e sem desculpas. Não se trata (nunca) do politicamente correto, e do “já não se pode dizer nada”. Trata-se da presença dos indivíduos racializados sem o filtro da subjeição ou da excepcionalidade, e de como essa surpresa mexe com a estrutura colonial da sociedade portuguesa que nunca foi confrontado com essas condições. É também sobre este binómio de frustração sobre a inversão dos papéis coloniais, porque aqui é o colonizador que serve os indivíduos racializados, percepcionados subconscientemente como colonizados. Não quero eliminar os argumentos racionais, mas nestes casos a percepção das emoções é primordial para perceber o que está em causa. Quando eu própria fui atendida senti um nervosismo e uma relutância no atendimento, um desprezo superficial. Não sei se será uma constante de frustração na sua vida, se simplesmente não gosta de jovens ou se tem um problema com mulheres emancipadas, mas algo se passa na cabeça de milhares de homens de meia-idade atrás de balcões como se este fosse (ainda) o século passado...


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