Das armas e dos Brasões assinalados

By sufragista - fevereiro 14, 2023




A propósito do recente "restauro" do Jardim da Praça do Império, em Belém recordei-me dos dias que passei ali em Outubro passado. Cruzei a envolvente do jardim várias vezes e espreitei-o pelos tapumes que o deixavam entrever. A minha conclusão, sobre aquilo que foi feito é que este não é mais do que o culminar de vários projetos de refascização do espaço público, apenas mascarado de "restauro" e "reabilitação" do património.

Há dois anos atrás houve um evento muito importante (para mim), organizado pela Galeria Municipal do Porto e um coletivo interseccional da cidade à volta da ideia de memória colonial dos espaços públicos, nomeadamente dos jardins do Palácio de Cristal no Porto, que em 1934 albergou a I Exposição Colonial Portuguesa. O evento chamava-se Um Elefante no Palácio de Cristal, e aludia, literalmente, a um grande elefante que fazia parte da fachada temporária do Palácio, onde se albergou a dita exposição. Aludia também, claro, a todos os fantasmas que ainda se escondem naquele jardim, pela cidade toda, da baixa até à Praça do Império, na Foz, onde até hoje sobrevive — para além da toponímia — um mausoléu colonial aberrante que fora criado em 1934 para a mesma Exposição Colonial, um evento marcante que incluia um zoo humano, com uma arrepiante encenação de lugares e povos "exóticos”, trazidos para a Invicta para dar a ver o “Império”. Esse mausoléu, uma escultura que é uma verdadeira ode à experiência portuguesa do colonialismo, fora replicada em pedra em 1940, e após a exposição, guardada nos acervos da CMP até aos anos 80, quando foi resgatada para figurar no centro de uma rotunda da cidade do Porto com o nome de Praça do Império.

Esse movimento de resgate e recuperção do irrecuperável é uma tentação política recorrente, e aquilo que vemos hoje, no Porto e em Lisboa, não são mais que exercícios de estilo que trazem um "ar do tempo" que preferiamos que nunca voltasse. As obras de recuperação dos jardins do Palácio de Cristal são também um reflexo dessa visão que parece pretender reviver um passado torpe com a desculpa da "reabiitação". O que a CMP faz actualmente em termos de manipulação cultural do legado do liberalismo de 1820 é outra faceta dessa mesma cultura de "reabilitação" do passado seletivo. 

Esta cultura de “reabilitação” de um passado idealizado não é nova, e tem permeado a cultura material e urbana dos últimos anos, do design à arquitetura, num mar de “recuperações” e “revivalismos” que rapidamente resvalam num identitarismo primário que nos leva sempre de volta à autorização do passado, e do seu legado político e social, como uma consequencia inevitável do presente, como se dissessemos: só podemos estar aqui graças a este passado, em vez de nos instar a uma visão crítica que ponha em causa o formato desse passado — em vez de o aceitar numa fórmula única, que, no fundo não é mais que dar continuidade à narrativa unificante, de homogenização cultural e territorial, que o modelo de identidade cultural idealizado por António Ferro e instaurado por Salazar alcançaram de forma hegemónica neste país.

O que observamos no espaço público, da toponímia ao desenho urbanístico, dos monumentos aos edifícios, é ainda um país em tudo igual ao país que criou A Portuguesa, o tal hino maldito, que só agora começa a ser ouvido criticamente por parte de quem a cultura nacional sempre tratou como “outro”. E talvez seja apenas a partir de fora que esta cultura possa realmente ser removida, mexida, e alterada — pelo olhar dos que devem pôr em causa esta hegemonia doente: se permitirmos que nos olhem com um olhar vindo do mesmo passado, com direito à mesma genealogia, vamos encontrar o olhar dos que estiveram à mercê de uma ideia de Império e de superioridade cultural que não cabe mais neste século, nem nesta década, nem neste ano. Somente permitindo o olhar e a palavra “do outro” poderemos voltar a ser, sem a muleta de um projeto baseado na diminuição de uns para a ascensão de outros. Só nesse processo poderemos fazer cidades em paz com todes, sem espaços de culto ao que de mais podre possamos trazer do passado.

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