Numerologia

By sufragista - maio 11, 2023








 
Tudo começa com números.
Há onze anos atrás, na madrugada a seguir ao dia em que fiz vinte e cinco anos, um homem ao volante de um carro deu-me um estalo que me doeu por mais de uma hora. Mas não foi aquele estalo que me ficou marcado no rosto, foram as duas horas seguntes em que esse homem me conseguiu convencer que eu havia merecido aquele estalo, que eu havia provocado aquele momento, que eu não estava bem, e que eu era claramente quem precisava de mudar, ou de ajuda, ou de ter feito diferente. Eu que tinha levado um estalo. Era eu quem o merecia, quem tinha pedido por ele. Aquele era o resultado daquela noite, após um jantar de aniversário a dois, numa noite fresca de primavera, que havia acontecido por mim. Eu, a aniversariante, tinha encomendado aquele estalo. Porque me tinha descontrolado, porque tinha gritado, porque não tinha tido paciência com o homem. Eu era a pessoa sem controlo, gritando como uma louca. Uma pessoa que merece um estalo num carro em andamento. Eu tinha feito birra e portanto tinha levado um estalo. Eu era, portanto, uma criança. Uma criança de vinte e cinco anos.

A partir daquele dia, e talvez quase até ao meu trigésimo primeiro aniversário, eu passei a ser uma criança. E em vez de fazer vinte e seis, vinte e sete, vinte e oito anos, era como se fizesse oito, sete, seis anos. A partir daquele momento parti, não imediatamente para trás mas para o início da vida. Muito devagar, até ao ponto de não saber abrir a boca para dizer quem sou, o que quero, o que faço. Até ter um nó na cabeça tão grande que para desatá-lo teria de estar sozinha, absolutamente sozinha, mas não da forma como estava com ele: isolada. Desde o momento em que confessei a algumas amigas que as coisas não iam bem — e elas não deram o devido crédito, talvez porque eu própria o relativizei, talvez porque ninguém se queira meter nas relações dos outros — que aquela criança não parou de crescer em mim, com um medo permanente e secreto que não sabia revelar. Esse medo não era o de ser humilhada, rebaixada, insultada, ignorada. Isso acontecia sem que eu fizesse absolutamente nada, dissesse o que dissesse, fizesse o que fizesse. O medo era o de voltar àquela noite e encontrar de novo aquele estalo, e o que mais pudesse vir a seguir. A possibilidade do descontrolo era constante e ameaçava cada momento. Eu era refém permanente daquela ameaça de violência velada, quando ela já tinha feito todos os danos. A minha auto-estima destruída havia-me reduzido a alguém sem livre-arbítrio, dependente e sem destino. Uma criança por dentro, em permanente dívida.

E só na espiral de loucura mais intensa, na mais densa, naquela em que a luta que travamos por dentro nos devora, é que parece possível uma fuga, uma inspiração, um segundo de paz. E a tensão sente-se no corpo, nas mãos, nas rugas da cara, na expressão de ódio e desprezo nos olhos que nos olharam antes com ternura. E a fuga pode fazer-se por etapas, desatando os nós sucessivos, desafiando a tensão da ameaça iminente. Ou de uma só vez, cortando o mal de uma vez por todas.

Sair daquele pesadelo foi uma coisa difícil, e muito amarga. Esquecer tudo o que aquela criança aprendeu foi outra. Uma que demorou muito mais tempo, não resisiu a voltar à mesma relação, e voltar a confrontar-se com o mesmo veneno. Sem aquele ano de permeio, sozinha, nunca teria tido coragem de abandonar aquela relação. Nunca teria tido o desígnio de fazer uma desintoxicação da alma e da cabeça sobre tudo o que havia passado. E também um luto do que perdi no caminho. A caminhada no deserto, como lhe chamei ao verão de há cinco anos atrás. Para renascer, qual fénix, uma nova mulher.

Fiz também o luto daquela criança. A que estava dentro de mim, aterrorizada, com todos os medos que aterrorizam as meninas de seis, sete, oito anos. Nesta idade lembro-me de perguntar à minha mãe sobre a morte, sobre quando ela iria morrer. De perceber que isso era o fim, quando as pessoas desapareciam. E ela me responder, emocionada, que ainda levaria muito, muito tempo. Quinze anos. Quinze anos é muito tempo para uma menina de oito anos de idade. Tudo começa e termina com números.

Estavam provavelmente dez graus centrígrados quando a minha mãe morreu. Era uma terça-feira de Carnaval e eu já não chorava no sexto piso de um hospital. Lembro-me das últimas inspirações. De repetir como mantra para mim Maman et mort, mesmo antes da última inspiração. Eram quatro horas da tarde, fazia sol e o meu pai, cheio de privação de sono, quase adormecia, naquela espera lenta. Velar alguém na hora da morte atravessa-nos como uma agulhinha dolorosa, uma dor mansa e terrível, um sabor agri-doce na boca qual limbo. Queremos permanecer ali mas também queremos fugir, deixar que a morte te leve, desistir da espera, da tortura, da dor. Segurar ou largar a mão, de ti, a quem procurei a infância toda em desespero quando te perdia de vista. Depois deste amor incondicional não há nenhum que lhe compare, pelo menos até cumprirmos o designio da parentalidade. Depois de saber que eu fui o motor da vida que te sobrou, já com mazelas e um medo novo da morte.

E coser tudo isto novamente dentro de mim, nesse deserto de me fazer mulher, pessoa inteira, foi tal e qual dizia a mulher-boneca que fala com a Harper nos Anjos na América, cuja fala me persegue até hoje, quando tenho de descrever a dor da mudança, mesmo sem deuses na minha vida.

“Harper: In your experience of the world. How do people change?
Mormon Mother: Well it has something to do with God so it's not very nice. God splits the skin with a jagged thumbnail from throat to belly and then plunges a huge filthy hand in, he grabs hold of your bloody tubes and they slip to evade his grasp but he squeezes hard, he insists, he pulls and pulls till all your innards are yanked out and the pain! We can't even talk about that. And then he stuffs them back, dirty, tangled, and torn. It's up to you to do the stitching.
Harper: And then get up. And walk around.
Mormon Mother: Just mangled guts pretending.
Harper: That’s how people change.”


Junho 2022

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