Da heteronormatividade e da maternidade compulsiva

By sufragista - abril 16, 2025


Acho que tudo começou ainda na pré-escola, na infância. Fizeram uma encenação de um casamento tradicional, com as crianças vestidas como adultos, mascaradas de velhas e velhos; a mim calhou-me fazer de mãe de um dos noivos, vestida de preto, qual viúva, mas com marido: um miúdo de cinco anos com um bigode pintado na cara e uma gravata grande demais para ele, a quem disseram para me dar um beijo para a fotografia da praxe (e que praxe!). Um beijo de um miúdo na minha bochecha de criança. A humilhação que senti, e talvez essa vergonha em ter esse momento para sempre perpetuado numa fotografia, tenha talvez contribuído para a minha relação difícil com a minha imagem fotografada, ao ponto de se tornar quase uma fobia pela adolescência. Fotografarem-me em casamentos continua a ser uma experiência bizarra, como se estivesse mascarada, a representar um papel, e sempre um papel diferente. Por vezes, sou a Filipa feliz em modo casal, outras sou a Filipa recém-solteira e outras só a Filipa que não sabe bem o que está ali a fazer. Nunca participei de um casamento em que acreditasse, talvez à exceção de um, mas cuja amizade da noiva haveria de perder em pouco tempo.

A segunda memória é do momento da dança slow na colónia de férias que comecei a frequentar aos 10 anos. De dançar com miúdos mais baixos e geralmente mais pequenos que eu. De ser pedida em namoro num bilhete de papel, de cumprir zelosamente o papel de menina, de namorada. De trocar moradas, e depois, cartas inocentes, meses antes da minha primeira menstruação. Que monstruosa, esta sexualização precoce e dissimulada das crianças. Como se nunca fosse suficientemente cedo numa vida para determinar um papel de género, um determinante “biológico”. Ao serviço de quem, realmente?

Nas séries e filmes sobre relações de jovens adultos é muito comum a cena da avó ou do avô velhinho a quem o neto ou a neta apresenta uma/um namorada/namorado falso, geralmente uma/um amiga/amigo, para que morra feliz sabendo que essa geração está assim “assegurada“. Quem nos tem ensinado este truque maligno? De que só valemos enquanto seres destinados a reprodução? De que estaremos sempre incompletas sem descendentes biológicos?

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