A liberdade é minha

By sufragista - fevereiro 16, 2021











Nos anos em que vivi em Lisboa conheci uma ilustradora chamada Bruna Guerreiro que assinava o trabalho dela como Lapo. Comprei-lhe inclusive uma das suas ilustrações, que ainda tenho na minha parede. Era uma ilustração de uma menina grande que praticava yoga, numa posição de equilíbrio bastante difícil. Foi aquela ilustração que me motivou e espicaçou a experimentar fazer as aulas de yoga que aconteciam no último piso do edifício da LX Factory, num dos edifícios de uma antiga gráfica, onde eu trabalhava à época. Esse espaço era o Balneário, assim chamado porque ali mesmo ficava o antigo balneário dos trabalhadores da fábrica. No espaço exato desse antigo balneário fiz dezenas de aulas de yoga juntamente com ela, e com muitas das outras pessoas que partilhavam aquele espaço de cowork. Lembro-me vivamente que a minha timidez, e a dela, nunca nos permitiram muitas interações, mas recordo-me de pesquisar o trabalho dela e de ver uma exposição onde estava esta mesma ilustração e de gostar muito daquela imagem. 

Um ano e tal depois, quando o terceiro contrato de 6 meses num atelier de design gráfico — onde ganhava o ordenado mínimo, à época, menos de 500€, se conseguem acreditar — estava prestes a terminar, tive um convite para começar um novo projeto, e comecei a trabalhar no que viria a ser a Mariamélia. Uma das ideias era convidar ilustradores a desenharem a personagem que tinha inventado para a marca, uma iniciativa que teve resultados agridoces: por um lado, houve alguns trabalhos muito bons, e conseguimos vender uma boa parte das ilustrações, mas, confesso, as condições que oferecemos aos ilustrados não foram as mais justas, fruto de alguma ingenuidade, e isso marcou parte desta iniciativa. Uma das ilustradoras que convidei para este desafio foi a Bruna, com quem tive uma breve conversa no verão de 2014. O projeto estava ainda pouco definido e o site e a presença online era inexistente, e talvez por ter pouca informação, nunca me chegou a responder ou enviar qualquer proposta. O que na altura me desagradou, mas mais tarde, quando pensei mais criticamente sobre isso, achei bastante justo. Se eu fosse uma artista freelancer, quereria conhecer quem, e como, o meu trabalho iria ser vendido e promovido. Pareceu-me justo.

Apenas muitos anos depois, já com a Mariamélia na sua terceira fase, depois de ser um projeto sem rumo, e depois de passar a ser um projeto só meu, percebi pelas redes sociais que a Bruna Lapo tinha um novo projeto também: um restaurante com espetáculos ao vivo, e também uma loja onde se vendiam muitas das suas ilustrações e outros produtos ilustrados por ela. Isto acontecia durante a fase épica da restauração e do turismo em Lisboa, e em pleno centro da cidade. Não lhe prestei mais atenção e eventualmente deixei de seguir a página. O trabalho artístico e gráfico já não me captava, e o negócio não tinha nenhuma novidade que pudesse ser percebida de uma forma digital. Era mais um espaço onde se comia e convivia. 

Até ao início deste ano, não fazia ideia de como, onde, ou com quem aquele negócio funcionava, se era um grupo de amigos, um casal, ou outra formulação qualquer. Só sabia que ela deveria estar por trás, porque o restaurante levava o nome que ela um dia usara para o seu trabalho artístico. E foi apenas recentemente que me inundei de “vergonha alheia”, involuntariamente. Não só porque ainda seguia aquela página, mas porque tinha feito um tag da conta dela (que era a mesma do restaurante) na ilustração que tenho na minha sala, nume imagem que publiquei na minha conta pessoal. Para mim, promover o trabalho dos outros não é um coisa que faça de ânimo leve. Não tenho por hábito usar as redes para promover o trabalho dos outros, a não ser que o conheça bem. E neste caso, senti-me traída. Aquela ilustração já não tinha nada que ver com aquele projeto. Aquele projeto já não tinha nada que ver com a minha motivação em comprar aquela ilustração, numa altura em que não me dava a praticamente a nenhum luxo, e aquele acabou por ser um. Aquele restaurante era só um restaurante num local privilegiado da cidade, onde os seus donos se acharam superiores aos seus pares, e resolveram para si mesmo, e para os seus clientes, que eles tinham outros direitos. Não o fizeram para reclamar e inspirar outros a fazer o mesmo, isso é parte da “balela” que contam, fizeram-no por puro hedonismo. Se fosse uma causa, algo em que acreditavam profundamente, haveriam feito outras ações que demonstrassem descontentamento político (tal como o famoso chef sérvio que vimos na TV junto à Assembleia da República, que, à parte das suas motivações pessoais, estava, apesar de tudo, a querer representar um setor). Os responsáveis do Lapo estão apenas a representarem os seus próprios interesses, e os dos seus clientes. 

Nunca tive uma relação intensa com o “folclore” de Abril, da Grândola aos cravos — mas já a cantei, inclusive, em frente à Assembleia da República, no ano em que permiti que me explorassem na capital, por uma ou outra oportunidade de algo melhor e mais justo, que nunca chegou. No entanto, senti um intenso nojo ao ouvir aquela música cantada por um grupo de privilegiados (diria betos, mas não quero ferir susceptibilidades), num restaurante que se organizou, agora, como se fosse um espaço privado e não um negócio, apenas porque é mais vantajoso, dadas as circunstancias atuais. Porque a Liberdade "é só minha": este estranho conceito de liberdade que é de uma liberdade privatizada. Ignorando conscientemente que aquela liberdade afeta a liberdade de milhares de outras pessoas, e que ridiculariza o esforço hercúleo que todos os outros negócios (de que o proprietário fala) estão obrigados a fazer, concordem ou não, acreditem ou não nas justificações dadas pelos governantes. Mas que, em última instância, o fazem por respeito a todos os que estão no mesmo esforço e aos que lidam com o problema em primeira mão, seja nos hospitais ou nos lares de 3ª idade, onde se encontram as pessoas afetadas pelo vírus de forma mais grave. Quase me ocorre dizer que aquelas pessoas que agora cantam a Grândola, bateram palmas há um ano atrás aos profissionais de saude à janela, e depois cuspiram no primeiro de maio organizado pelas organizações sindicais, de forma essencialmente simbólica, dando razão ao movimento anti-esquerdas que a direita tanto quer perpetuar. As conclusões parecem ser sempre enviesadas em função do que precisam para si próprios, e nunca em função do bem comum, do que é necessário fazer numa sociedade solidária e democrática.

Os donos dos restaurantes do Bairro da Jamaica certamente não poderão sobreviver sem os seus negócios abertos mais de dois meses, mas eu podia apostar que os donos do Lapo aguentavam dois anos, se fosse preciso. Há um mundo inteiro a separar estes dois polos: da hiper-especulação turística do centro gentrificado da cidade ao gueto racializado de uma cidade-satélite da capital. E é toda esta distância que já não cabe na Grândola, um sítio onde agora, quem menos ordena, são os migrantes quaisi-escravizados do Bangladesh ou do Brasil, que servem na restauração ou na agricultura, para alimentar este monstro da turistificação que construímos como saída única da crise de 2012. As pontes a fazer, não apenas entre estes mundos distantes, mas entre a ideia política de liberdade e o interesse privado, parecem tão urgentes como alertar para esta fragmentação absoluta do livre arbítrio: um bolha de escolhas e direitos, sem consideração pelo outro, onde habitam aqueles que estão nos lugares de exigência, seja esse lugar um pódio natural de privilégio acumulado — pelo género, pelacor da pele, pela nacionalidade ou pela orientação sexual — ou uma morada no centro de uma cidade gentrificada. 

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