O século XXII ainda mais longe

By sufragista - janeiro 20, 2022

Faz hoje dois anos do episódio político e mediático mais constrangedor e arrepiante que já vi na minha vida. Ainda hoje acho que ainda não tenho distância suficiente para compreender realmente o que se passou entre outubro de 2019 e fevereiro de 2020. O que parecia, na época, um verdejante campo com papoilas selvagens tornou-se rapidamente num terreno alagado, e com areias movediças. A minha inscrição como apoiante do Livre ficou em cima da secretária e nunca foi enviada, e eu senti-me coberta de vergonha, não "alheia", mas própria, de ter apoiado um partido capaz de se dedicar a uma perseguição política pessoal, no preciso momento em que, pela primeira vez desde o 25 de abril, um partido da extrema-direita passava a ter representação parlamentar, fornecendo-lhe assim, de mão beijada, um argumento para a perseguição mediática mais odiosa e racista — devidamente ignorada por todos os nossos parlamentares e pelo próprio Governo.

O que o Livre fez há dois anos foi enterrar definitivamente a possibilidade de haver polític@s anti-racistas com representação parlamentar, em que a sua agenda tem a mesma importância que as outras agendas. Em que o anti-racismo não é uma questão secundária, um visto numa caixinha, algo que se diz apenas porque é o que deve dizer um partido de esquerda. O trio de militantes deste partido que fizeram finca-pé na expulsão da sua deputada recém-eleita pareceram-me uma reincarnação da Inquisição, de tal forma conseguia ver um tom esverdeado de resentimento e rancor nas suas expressões faciais. Quem se presta a uma coisa deste tipo em público? Como é possível afirmar que não foi uma coisa pessoal (um partido inteiro contra uma só pessoa?)

Nada sobre este caso será claro em tempo útil — talvez apenas daqui a muito tempo, e creio que talvez nunca haja uma verdadeira reparação dos danos causados, antes de mais, à Joacine Katar Moreira. Mas estou certa que muito daquilo que observei naqueles meses, quase sempre à distância, são coisas que ainda não sei traduzir por palavras, mas que me ficaram, também como um amargo de boca, do que senti por aqueles dias. Teria para isso que falar da primeira vez que ouvi JKM a falar em público e do primeiro sinal que tive de que haviam muitas coisas para as quais era demasiado cedo em Portugal, e que falar abertamente de anti-raciscmo era permitido apenas a alguns. Descobri rapidamente, e graças a ela, que, ao contrário do que lhe disseram, vezes sem conta, gritar é realmente a única forma de se ser ouvida, principalmente quando a plateia já se juntou para te julgar unanimemente. O julgamento mais cobarde da história política portuguesa, e aquele de que mais me envergonho, depois de me ter juntado, aos pequenos grupos de pessoas que promoveram a campanha do Livre no Porto, em duas ocasiões, uma das quais recordo que era suposto reunir todos os candidatos às eleições legislativas, e no qual esteve ausente a própria Joacine, mas na qual esteve presente Rui Tavares, alguém que nunca conseguirei olhar da mesma forma, e que senti que traiu o meu voto no dia em que acedeu àquele espetáculo público de perseguição. Bater-lhe palmas, nas véspera das eleições legislativas, pelas suas palavras duras contra o deputado da extrema-direita é uma coisa que me dá (agora) voltas ao estômago, porque é ser-se conivente com o circo político-mediático para o qual o próprio Livre contribuiu ao sanear JKM. Tenho absoluta consciência de que nada neste episódio é óbvio para a opinião pública — muito graças à cobertura mediática sedenta de “sangue” que temos em Portugal, condicionada pelos seus próprios viéses, entre os quais, o sexo e a cor da pele — mas estou convicta de que tudo isto será estudado e analisado no futuro porque este caso é paradigmático dos problemas estruturais da sociedade portuguesa do século XXI, e provavelmente, paradigmático das mudanças políticas profundas que veremos neste século, à escala global.

A Joacine foi a primeira pessoa e política que ouvi publicamente e falar “no século XXII”, durante o seu discurso na noite de vitória eleitoral — um texto aliás a recordar, e que o Livre se dedicou, também, convenientemente, a apagar. Naquela noite quase consegui vislumbrar um futuro político diferente, no qual era finalmente possível falar de futuro, um futuro digno para tod@s, e em que esta preocupação essencial, de igualdade transversal, era um pilar fundamental. Mas rapidamente, tal como na primeira vez que ouvi Joacine falar em público, alguém no fundo da sala mandou-a calar. As primeiras reacções eram sobre as bandeiras da Guiné-Bissau que JKM teria convocado para estarem no palco, quando, claramente, foram trazidas por guineenses extasiados pela ideia de uma sua compatriota ser eleita no parlamento português — um feito histórico num país, estruturalmente racista e com um passado colonial como Portugal. O partido, em vez de se afastar deste ciclo de pseudo-notícias com laivos racistas estava mais ocupado a castigar a sua deputada por um voto confuso numa votação simbólica de solidariedade com o povo palestiniano. Depois deste episódio, que não foi uma questão em si mesma, mas um argumento para se avançar para uma retirada de confiança política, que era no fundo, um afastamento político da sua pessoa e do que ela representava. Não houve nenhum choque ideológico, uma traição, ou um desentendimento claro: houve um processo de eleição horizontal e livre — as diretas do partido — que foi simplesmente deitado ao lixo, juntamente com os votos das pessoas que votaram no Livre por causa de JKM, e não apesar da sua candidatura. Infelizmente com o meu voto não a poderia eleger porque voto no círculo do Porto, mas votei porque a sua candidatura me fez acreditar naquele projeto, mais ainda do que tinha acreditado antes. O que se seguiu deu-me vontade de nunca mais confiar num partido político na minha vida.

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